O presente trabalho objetivou analisar empiricamente a relação entre jogos do campeonato brasileiro e violência contra a mulher no Brasil. Trata-se, portanto, de um estudo pioneiro sobre um tema de grande relevância, tendo em vista que ao mesmo tempo que o futebol é uma paixão nacional, o país é um dos campões em termos da violência contra a mulher. Para a investigação empírica, construímos uma base de dados contendo informações de todos os jogos do campeonato brasileiro da série A, entre 2015 e 2018. Ao mesmo tempo obtivemos (via Lei de Acesso à Informação) o conjunto dos microdados de violências contra as mulheres em seis Unidades Federativas. Nossas estimativas indicaram que no dia em que o time da cidade joga, o número de ameaça contra mulheres aumenta 23,7% e o número de lesão corporal dolosa aumenta 20,8%. Quando investigamos se tais violências estavam ligadas às relações afetivas entre o perpetrador e a vítima, verificamos que os resultados se mantinham quando consideramos que o autor era companheiro ou ex-companheiro da vítima. Por outro lado, numa situação em que o autor e vítima não se conheciam, os resultados se mostraram não significativos estatisticamente. No conjunto, os nossos achados sugerem que existe uma forte relação entre jogos de futebol e violência contra a mulher e que esse fenômeno se insere dentro de uma perspectiva de violência doméstica. Possivelmente os valores associados a subcultura dos jogos de futebol, que refletem em certa medida os valores do patriarcado e das relações de poder da masculinidade, repercutem nas relações afetivas. Naturalmente não estamos sugerindo que a causa seja o jogo de futebol, que é uma paixão nacional. A causa se relaciona aos valores do patriarcado ainda muito presentes no país, sendo que o jogo de futebol pode funcionar como uma espécie de catalisador tornando mais vivo os valores da masculinidade e da forma como certos homens se vêm dentro de uma estrutura de poder quanto ao gênero.
Violência Doméstica Durante Pandemia de Covid-19
Embora a quarentena seja a medida mais segura, necessária e eficaz para minimizar os efeitos diretos da Covid-19, o regime de isolamento tem imposto uma série de consequências não apenas para os sistemas de saúde, mas também para a vida de milhares de mulheres que já viviam em situação de violência doméstica. Sem lugar seguro, elas estão sendo obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar junto a seu agressor, muitas vezes em habitações precárias, com os filhos e vendo sua renda diminuída.
Uma das consequências diretas dessa situação, além do aumento dos casos de violência, tem sido a diminuição das denúncias, uma vez que em função do isolamento muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para fazê-la ou têm medo de realizá-la pela aproximação do parceiro. Na Itália, por exemplo, país que apresenta uma das situações mais críticas na pandemia de coronavírus e que se encontra em quarentena desde o dia 09 de março deste ano, foi registrada queda de 43% das denúncias/ocorrências de crimes domésticos em seu território. De acordo com dados oficiais divulgados pelo comitê parlamentar de violência contra mulheres, os relatórios da polícia sobre abuso doméstico caíram para 652 nos primeiros 22 dias de março, comparado a 1.157 no mesmo período de 2019. Também a maior linha de apoio à violência doméstica do país, o Telefone Rosa, afirmou que as ligações caíram 55% desde o princípio do isolamento: foram apenas 496 chamadas nas duas primeiras semanas de março, onde antes eram 1.104 no mesmo período do ano passado.
Apesar da aparente redução, os números não parecem refletir a realidade, mas sim a dificuldade de realizar a denúncia durante o isolamento. A ONU, inclusive, por meio do seu secretário geral António Guterres, tem recomendado aos países uma série de medidas para combater e prevenir a violência doméstica durante a pandemia. Entre as propostas, destacam-se maiores investimentos em serviços de atendimento online, estabelecimento de serviços de alerta de emergência em farmácias e supermercados e criação de abrigos temporários para vítimas de violência de gênero.
A fim de verificar a variação nos níveis de violência doméstica nos primeiros dias das medidas de isolamento social decretadas no país, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) produziu este documento a pedido do Banco Mundial. Na primeira seção apresentamos um estudo com dados oficiais coletados junto as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social e Tribunais de Justiça relativos à violência doméstica em seis Estados que se dispuseram a fornecer os dados de forma mais ágil e desburocratizada; na segunda seção apresentamos estudo produzido em parceria com a empresa Decode Pulse, com grande experiência em mineração de dados em redes sociais, que analisou relatos de brigas de casais e violência doméstica nas redes sociais entre fevereiro e abril deste ano.
Lei Maria da Penha: necessidade de um novo giro paradigmático
O ingresso da Lei Maria da Penha no cenário jurídico promoveu uma ruptura paradigmática tanto quanto à sua formulação quanto às mudanças legais introduzidas. Após dez anos de vigência, estudos apontam diversos obstáculos para a sua implementação, especialmente relacionados às medidas protetivas de urgência, conforme recentes pesquisas indicam. Observa-se que a lógica da centralidade da mulher vem sendo subvertida pela lógica do sistema de justiça penal tradicional. Pesquisa inédita sobre as condições socioeconômicas e a violência doméstica no Nordeste traz novos elementos para a análise sobre a violência doméstica contra mulheres nordestinas. A partir desses estudos, este artigo sustenta a necessidade de um novo giro paradigmático da lei que diminua a incidência do sistema de justiça e privilegie as políticas de prevenção e de assistência.
Edição: RBSP v. 11, n. 1, Fev/Mar 2017